Pesquisa demonstra que a visão de saúde indígena não é contemplada no sistema de vigilância comunitária em comunidade na região de fronteira brasileira
A primeira aluna indígena do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz, Yuri Consuelo Rodriguez Rodriguez, apresentou recentemente o seu trabalho de conclusão do mestrado “Vigilância Comunitária em Saúde e resistência descolonial na comunidade indígena Yararaca, de Vaupés -Colômbia, fronteira com o Brasil”. O estudo teve como objetivo explorar os significados e experiências da comunidade sobre vigilância comunitária em saúde a partir das práticas e conhecimentos culturais próprios sobre bem-estar e saúde e identificou uma tensão entre o uso da biomedicina e a medicina indígena no território. Segundo Yuri, esse conflito existe por conta do abandono das práticas ancestrais, fruto da relação histórica de poder e dominância do paradigma biomédico. A pesquisa demonstrou, ainda, que a visão de saúde indígena não está presente nos sistemas de vigilância comunitária oficiais, embora haja perspectivas em comum, como a de práticas e ações de proteção da vida.
O Sistema de Vigilância Comunitária em Saúde consiste em um programa de vigilância e monitoramento local através da participação e colaboração direta das comunidades. Os integrantes possuem um papel ativo na promoção da informação, identificação de prioridades e necessidades de cuidados em saúde. O conceito de saúde para os indígenas está totalmente relacionado à manutenção da harmonia entre o homem e a natureza que se dá no território físico e espiritual, com a interconexão entre os planos de cima, o espiritual, o intermediário, chamado de vegetativo, e o inframundo, onde estão a desarmonia e as enfermidades. Segundo relata Yuri, apenas os sacerdotes têm a habilidade de manter a harmonia entre as três esferas por meio das práticas de cura e proteção. Já a biomedicina não leva esses territórios e esses conhecimentos em consideração. Esse cenário de conflito foi identificado a partir da categorização das falas colhidas em encontros com lideranças e conhecedores reunidos em grupos de 15 a 20 pessoas.
Mesmo tendo alguns elementos comuns, a exemplo do tempo como indicador do processo saúde-doença, a perspectiva indígena não é cronológica como a da biomedicina. Na saúde indígena, o tempo está baseado no calendário ecológico e cultural de cada etnia, que determina a época de cultivo, caça, pesca, práticas e rituais e danças para proteção e cura e outras atividades socioculturais.
Um conceito comum, mas com perspectivas diferentes, é o de risco e perigo do processo saúde-doença. Para os indígenas, o risco é concebido como a ausência de práticas de proteção e cura realizadas pelos sabedores de acordo com o calendário ecológico e momentos-chave na vida do indígena. Outra diferença está nos sinais e indicadores que, para os indígenas, estão relacionados diretamente ao entorno, cantos, ruídos e sons de certos animais e sensações que indicam mau agouro no caminhar dos indivíduos.
O estudo, do tipo etnoepidemiológico, foi realizado na comunidade indígena de Yararaca, que fica no município de Vaupés, na Colômbia, na fronteira com o Brasil, e reúne uma população de 24 famílias de 11 nações indígenas. As informações também foram registradas em um diário de campo e no formato de vídeo, seguindo o conceito de bibliografia viva, levou em consideração a tradição da transmissão oral do conhecimento.
Com base nas informações dos diálogos também foram geradas três imagens que representam os conhecimentos indígenas sobre saúde: a harmonia entre o corpo, o pensamento o tempo e o espaço; o calendário que orienta a vida e a saúde nas comunidades indígenas, com as práticas socioculturais e rituais que acontecem conforme os ciclos biológicos baseados nas constelações estrelares; e as reproduções do conceito de saúde para os indígenas.
Segundo os participantes do estudo, os saberes ancestrais, bem como a base de conhecimento do processo saúde-doença para a medicina indígena e são cruciais para a implementação e adesão a estratégias de vigilância comunitária em saúde. Para isso, é necessário afirmar os saberes tradicionais e orais como um sistema complexo e necessário para a compreensão da saúde nos territórios com a presença de pessoas indígenas. O estudo indica, ainda, que as culturas tradicionais são um marco civilizatório que guardam respostas para a atual crise civilizatória que vem impactando a humanidade.
O trabalho foi orientado pelo professor doutor Alcindo Antônio Ferla, do ILMD/Fiocruz Amazônia e coorientado pela doutora Johanna Gonçalves. A banca examinadora contou com a participação das professoras dras. Maria Augusta Nicoli, da Universitá di Parma (Itália), e Sônia Maria Lemos, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). O estudo foi apresentado como conclusão do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA), do ILMD/Fiocruz Amazônia, que integra o consórcio para oferta do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz.