
Ausência de estudos sobre a Doença de Haff reforça a necessidade de fortalecer a vigilância epidemiológica integrada da enfermidade no Brasil
A Doença de Haff (DH), conhecida popularmente como "doença da urina preta", é uma síndrome rara caracterizada por rabdomiólise (lesão muscular aguda) associada ao consumo de peixes ou crustáceos contaminados. No Brasil, o primeiro registro ocorreu em 2008, no Amazonas. Desde 2021, o Pará tornou-se um foco crítico, concentrando 38% dos casos da região Norte em 2022. Estudo desenvolvido por Deisiane Mesquita no âmbito do Doutorado do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz, analisou 169 casos notificados no estado entre 2021 e 2023, a maioria (142) classificados como compatíveis com a DH, e identificou padrões geográficos, sazonais e fatores de risco associados à enfermidade. A tese "Cenário da Doença de Haff no estado do Pará: análise da distribuição geoespacial dos primeiros três anos de vigilância", de sua autoria, revelou dados críticos sobre a enfermidade.
A maioria dos casos ocorreu em homens (64,7%), principalmente na faixa etária de 50 a 59 anos (36%), e em áreas urbanas, refletindo o perfil populacional do estado. Os sintomas mais frequentes incluíram dor muscular intensa (9,93%), fraqueza (8,94%) e dores no pescoço (8,59%). A pesquisa identificou uma concentração expressiva de casos nos municípios de Belterra e Santarém, sugerindo potenciais focos de contaminação ou riscos associados aos hábitos alimentares locais. O período de maior incidência coincidiu com o verão amazônico (setembro a outubro), época de alta demanda por pescados. O tempo médio entre o consumo do alimento e o surgimento dos sintomas foi de quatro horas, enquanto o intervalo até a evolução para óbito foi de quatro dias.
A origem da doença permanece desconhecida, mas há indícios de relação com toxinas termoestáveis (resistentes ao cozimento) presentes em peixes contaminados, especialmente Pacu e Tambaqui. Fatores ambientais, como a vazante dos rios e a floração de algas tóxicas, também foram associados aos casos. O estudo apontou, ainda, desafios críticos: a subnotificação, a falta de um agente etiológico definido e a ausência de métodos diagnósticos específicos. Atualmente, os casos são classificados como "compatíveis" após exclusão de outras causas, como leptospirose.
Os achados da tese de Deisiane contribuem para a identificação de padrões de incidência e de fatores de risco da enfermidade, fornecendo subsídios para políticas públicas que previnam surtos e minimizem os impactos da Doença de Haff no Pará e no Brasil. Os resultados reforçam a necessidade de vigilância integrada entre instituições de saúde, pesquisa e comunidades locais. A análise geoespacial destacou a importância de estratégias direcionadas às regiões do Baixo Amazonas e Tapajós, além de parcerias com universidades para análises de risco e campanhas educativas sobre o consumo seguro de pescados.
A pesquisa, pioneira no Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz, utilizou dados da plataforma REDCap do Ministério da Saúde, consolidados pelo Centro de Informação Estratégica e Vigilância em Saúde (CIEVS) do Pará. Os achados foram publicados em quatro artigos científicos, incluindo um modelo de vigilância adaptável ao monitoramento da doença em outros outros estados. O trabalho foi orientado por Débora Cynamon Kligerman, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), e integra o Doutorado Acadêmico em Saúde Pública e Ambiente da instituição.
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