Ocorrência de tuberculose e infecção latente entre migrantes venezuelanos em Boa Vista (RR) resulta de uma interação complexa entre fatores individuais, sociais e estruturais
Considerada há mais de 25 anos um problema de saúde pública, a tuberculose segue como a principal causa de morte por doenças infecciosas no mundo. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 10,8 milhões de pessoas adoeceram com tuberculose em 2023. Esse desafio global se reflete de maneira particular em Roraima, estado integralmente situado em área de fronteira, na tríplice divisa entre Brasil, Venezuela e Guiana. Desde o ano de 2015, a crise econômica e social na Venezuela tem intensificado o fluxo migratório para o Brasil. Entre 2015 e 2017, o número de pedidos de refúgio no país aumentou exponencialmente: passou de um único pedido para aproximadamente 60 mil, um crescimento superior a 800%.
Tal aumento populacional foi sentido especialmente em Boa Vista, capital de Roraima, e em Pacaraima, cidade-gêmea com Santa Elena do Uairen - Venezuela. Com as transformações sociais e demográficas, os riscos associados à tuberculose tornam-se ainda mais complexos, exigindo estratégias específicas de vigilância.
Com o objetivo de investigar a tuberculose (TB) e a infecção latente por tuberculose (ILTB) em Boa Vista (RR), bem como fortalecer as políticas voltadas para ILTB Fernanda Zambonin desenvolveu a tese intitulada “Vigilância da tuberculose e da infecção latente da tuberculose, considerando a população migrante venezuelana em Boa Vista, Roraima, no período de 2018 a 2022”. O marco inicial de 2018 foi estabelecido por coincidir com a implementação do sistema de vigilância para a ILTB.
Inicialmente, foi realizada uma análise do padrão de distribuição espacial, com o cálculo das taxas de incidência de TB e ILTB, disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan e Sistema de Informação para notificação das pessoas em tratamento da infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis (IL-TB), respectivamente. A partir desses dados, foram identificados os aglomerados espaciais. O objetivo foi compreender as sobreposições entre esses aglomerados, ou seja, verificar se, nos locais em que foram identificados casos de tuberculose ativa, também havia ocorrência de ILTB.
As informações referentes à população por bairro foram obtidas junto à Secretaria Municipal de Saúde. Já os dados relativos à população imigrante foram levantados a partir dos relatórios da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
O estudo concluiu que, em relação às taxas de incidência de TB e ILTB, existe um aumento da vulnerabilidade entre os migrantes venezuelanos em comparação à população não migrante, ainda que a carga total desses agravos seja apenas parcialmente influenciada pelos casos neste grupo. Assim, a migração não constitui causa única, mas intensifica vulnerabilidades já existentes em contextos de desigualdade.
A pesquisa também evidenciou que, no município de Boa Vista, as taxas de incidência apresentam distribuição geograficamente heterogênea no período estudado, sendo a TB ativa concentrada nas zonas sul e oeste da cidade, áreas marcadas pela pobreza, expansão urbana desordenada e baixa cobertura de serviços essenciais. A ILTB é predominante na região central, associada à presença de abrigos e ocupações espontâneas de imigrantes venezuelanos, além da maior disponibilidade de unidades de saúde com capacidade para rastreamento. Em áreas periféricas, a ILTB apresentou baixa incidência e subdetecção em grupos vulnerabilizados, como a população privada de liberdade.
Também foi observada uma correlação significativa entre ILTB e a proporção de imigrantes venezuelanos por bairro, contrastando com a ausência de associação estatisticamente significativa entre a fração atribuível populacional (FAP) e as taxas gerais de incidência. Esses achados indicam que, embora os migrantes contribuam de forma relevante para a carga da doença, tal contribuição não é isoladamente determinante.
O estudo desenvolvido por Fernanda evidencia, portanto, que o enfrentamento da TB e da ILTB requer ações que ultrapassem a esfera clínica, articulando políticas públicas integradas e comprometidas com a justiça social.
MODELO - Além de reunir três artigos que analisaram os padrões territoriais da doença, a tese resultou na construção de um modelo preditivo inédito no Brasil para ILTB em migrantes venezuelanos, capaz de identificar os migrantes com maior risco de ILTB. Esse modelo é importante, pois nem toda a população se beneficia com o rastreamento da ILTB, sendo fundamental direcionar para os indivíduos com maior risco. O modelo incorporou seis preditores — estado civil, status documental, comorbidades, febre e tabagismo —, apresentando boa calibração e discriminação moderada.
Os dados secundários utilizados para a elaboração do modelo preditivo foram provenientes do Projeto TB Migrantes, coordenado pela Universidade Federal do Espírito Santo e desenvolvido em Manaus (AM), Boa Vista (RR), São Paulo (SP) e Curitiba (PR), com uma população de 850 sujeitos. A amostra foi distribuída proporcionalmente ao número de imigrantes em cada capital, sendo que Boa Vista concentrou aproximadamente 52% da população estudada (458 indivíduos). A coleta de dados ocorreu entre agosto e outubro de 2020 e utilizou o Sistema Research Electronic Data Capture (REDCap). Fernanda participou da fase de entrevistas estruturadas, conduzidas em espanhol, com duração média de 30 minutos, realizadas em ambiente seguro com apoio do Exército, de organizações não governamentais e do Governo Federal.
“Os resultados reforçam que o enfrentamento da tuberculose em contextos de fronteira exige estratégias territorializadas, sensíveis às desigualdades sociais e orientadas por evidências, contribuindo para o fortalecimento das ações do SUS, especialmente da vigilância em saúde nas fronteiras, e alinhando-se à estratégia global pelo fim da tuberculose”, ressaltou Fernanda.
Além de identificar territórios e perfis de risco, a abordagem metodológica integrou análises espaciais e modelos preditivos que possibilitaram qualificar a vigilância em saúde, apoiar a gestão baseada em evidências e contribuir para o avanço das metas de eliminação da tuberculose, com foco nas fronteiras e populações vulneráveis.
O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), que integra o consórcio para oferta do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz. A pesquisa foi orientada pelo Prof. Dr. José Ueleres Braga e coorientada pela Prof.ª Dra. Elvira Maria Godinho de Seixas Maciel.
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