Covid-19: Mortes em excesso chegaram a aproximadamente 250% em província no norte da Argentina em 2022

A pandemia de covid-19 ampliou desigualdades já existentes e agravou vulnerabilidades sociais em todo o mundo. Durante a emergência sanitária, o excesso de mortalidade, indicador global que mede a porcentagem de mortes acima do esperado na ausência de uma crise, tornou-se amplamente utilizado. Além das mortes diretamente causadas pelo SARS-CoV-2, a métrica também considera óbitos indiretos associados às medidas e condições do período.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorreram cerca de 14,9 milhões de mortes em excesso no mundo entre 2020 e 2021, em comparação com os anos anteriores à pandemia. Na Argentina, país fronteiriço com o Brasil, estimativas oficiais apontam aumento de 10% na mortalidade em 2020 e de 26% em 2021, em relação ao período de 2015 a 2019. Já na América Latina, que abriga 8,4% da população mundial, concentraram-se 28,8% das mortes por covid-19 até fevereiro de 2022, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).

Para analisar a mortalidade durante a pandemia e sua relação com características socioeconômicas, a médica argentina Elena Beatriz Sarrouf, desenvolveu a pesquisa “Variações espaço-temporais na mortalidade por covid-19 com foco na fronteira norte da Argentina, 2020-2022”. O estudo concluiu que, nas províncias com fronteiras internacionais, com exceção de Corrientes, para cada morte relatada houve 40% a mais de mortes em excesso não atribuídas diretamente à covid-19. Observou-se, ainda, que as taxas de mortalidade geral nessas províncias estavam abaixo da média nacional.

Em Jujuy, por exemplo, em setembro de 2020, morreram mais de 200% pessoas a mais do que o esperado para o mesmo mês em anos anteriores, em todas as faixas etárias. Já em Corrientes, em janeiro de 2022, o número de óbitos foi 141% superior ao estimado para o mesmo período em anos anteriores à pandemia, também em todos os grupos etários analisados.

Outro achado do estudo foi a variação por faixa etária: enquanto as taxas de mortalidade aumentaram entre pessoas de 20 a 59 anos e de 60 anos ou mais, houve redução entre menores de 20 anos. Em termos mensais, o excesso de mortalidade entre pessoas de 60 anos ou mais, em setembro de 2020 chegou a quase 233% em Jujuy, província com fronteira internacional, e em Misiones, província fronteiriça com o Paraguai, alcançou quase 180% em janeiro de 2022. Em 2022, porém, as taxas de excesso de mortalidade já se aproximavam entre todas as províncias.

O segundo artigo, derivado do estudo, revelou que, em 2020, os departamentos (distritos departamentais) atravessados pelas principais rotas nacionais concentraram o maior número de mortes, mesmo sob restrições formais de mobilidade. Esse resultado sugere que os eixos rodoviários e fronteiriços atuaram como vias de difusão da pandemia.

A rota em direção à Bolívia apresentou a maior concentração de óbitos, acompanhando o cenário de alta mortalidade registrado no país. Já no Paraguai, observou-se baixa mortalidade tanto no território nacional quanto nos departamentos fronteiriços. Em 2021, contudo, com o aumento das taxas de mortalidade paraguaias, surgiram aglomerados de alta mortalidade também nas regiões de fronteira.

“Compreender essas desigualdades territoriais permitirá fortalecer a vigilância epidemiológica ou orientar políticas sanitárias diferenciadas e elaborar estratégias de resposta mais equitativas para emergências futuras”, ressaltou Elena. 

O estudo ecológico utilizou fontes de dados secundárias, incluindo relatórios estatísticos de óbitos provenientes de fontes oficiais, o censo populacional de 2022 e 2010 e os indicadores socioeconômicos mais recentes da Argentina. Já os dados cartográficos foram obtidos do Instituto Geográfico Nacional. A população analisada foi dividida em faixas etárias: de 0 a 19 anos (população que sofreu recesso escolar), de 20 a 59 anos (pessoas que permaneceram economicamente ativas) e de 60 anos ou mais (pessoas que tiveram licença do trabalho), levando em consideração as medidas sanitárias implementadas em nível nacional.  A zona de estudo foram as províncias de Jujuy, Salta, Formosa, Chaco, Corrientes e Misiones. 

A tese desenvolvida por Elena, que é chefe do Departamento de Estatísticas em Saúde da Direção de Epidemiologia de San Miguel de Tucumán, no noroeste da Argentina, originou dois artigos. O primeiro, intitulado ‘Excesso de mortalidade por todas as causas’, foi acceito para publicação na revista Ciência & Saúde Coletiva, e analisou o excesso de mortalidade, comparando as províncias com fronteira internacional e aquelas sem fronteira. Permitindo compreender a dinâmica da doença, descrever padrões de distribuição geográfica e identificar áreas de risco elevado.

O segundo artigo, voltado à análise da difusão espaço-temporal das mortes por Covid-19, examinou os departamentos das províncias localizados ao longo da rota nacional que leva à Bolívia, bem como a relação entre o Paraguai e os riscos de mortalidade. O estudo comparou os territórios que apresentaram aglomerados de alta mortalidade com aqueles situados fora dessas áreas de concentração.

O trabalho foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz, que integra o consórcio para oferta do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz. A orientação ficou a cargo da professora dra. Aline Araújo Nobre (PROCC/Fiocruz), com coorientação do professor dr. Oswaldo Gonçalves Cruz (ENSP/Fiocruz).

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