Atenção primária à saúde materno-infantil: estudo aponta desafios na continuidade do cuidado e no acesso a recursos essenciais em regiões socialmente vulneráveis, como Roraima

A atenção primária é um modelo prioritário de saúde, é a porta de entrada para todos os outros serviços dentro do Sistema único de Saúde (SUS), que tem como base os princípios da universalização, equidade e integralidade. Apesar das medidas estratégicas realizadas pelo Ministério da Saúde, focados principalmente na estratégia de saúde da família para trazer uma continuidade do cuidado para a população, ainda observa-se que não está completamente efetivado, principalmente para as populações mais vulneráveis, grávidas, puérperas e neonatal.

Com o intuito de contribuir para a vigilância da atenção à saúde de mães e crianças no SUS, Daniele Alves Damaceno Gondim desenvolveu a tese: "Análise da atenção primária à saúde materno-infantil no estado de Roraima, Região Norte e Brasil, 2012 a 2017." O estudo evidenciou fragilidades no exame físico das gestantes, especialmente no que se refere à avaliação da cavidade oral, das mamas e aos exames ginecológicos, incluindo o de papanicolau. Em Roraima, apenas 33,3% das gestantes passaram por exame da boca, percentual semelhante ao observado na região Norte e no Brasil. Quanto às mamas, somente 44,4% das mulheres foram examinadas.

A partir do espelhamento geográfico, identificou-se que em 2012 havia 26 unidades cadastradas no  Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Em 2014 esse número subiu para 55 e, em 2017, alcançou 86 unidades. Segundo o trabalho, esse crescimento favoreceu a cobertura da atenção primária e fortaleceu o trabalho das equipes de saúde da família.

No que se refere à adesão ao PMAQ-AB, criado para incentivar gestores e equipes a elevar o padrão dos serviços de saúde prestados à população, os dados revelaram avanços significativos no estado de Roraima. Em 2012, apenas 18% das unidades estavam integradas; em 2014, o índice subiu para 48% e, em 2017, alcançou aproximadamente 100%. Apesar desse progresso, registrou-se um retrocesso na disponibilidade de medicamentos essenciais, especialmente os voltados ao pré-natal, como ácido fólico, ferro e antibióticos.

Em relação ao diagnóstico, os dados mostraram aumento na testagem para sífilis, mas queda no exame de HIV, revelando cobertura ainda inadequada. Persistem também fragilidades na continuidade do cuidado pré-natal, embora se destaquem avanços no acompanhamento do crescimento e desenvolvimento de crianças menores de dois anos, especialmente no que diz respeito à vacinação.

Quanto aos exames preventivos, os índices permanecem abaixo do ideal. Em 2014, a taxa de exame clínico das mamas foi de apenas 14,3% e, em 2017, chegou a 20%. Já o exame citopatológico do colo do útero (papanicolau) registrou cobertura de 33,3%, tendência também observada na região Norte e em outras partes do Brasil.

O estudo ainda identificou fragilidade nas orientações às gestantes sobre a participação em grupos de acompanhamento, problemas no registro e na comunicação entre equipes e usuários, comprometendo a continuidade do cuidado. No que diz respeito à assistência ao recém-nascido, verificou-se que em 2012, 23,5% das crianças não realizaram a consulta de puericultura até o sétimo dia de vida, evidenciando lacunas na atenção ao período neonatal.

Para chegar a essas conclusões, Daniele realizou  um estudo transversal, a partir de dados secundários já coletados em pesquisa anterior; retrospectivo, por analisar informações referentes a diferentes anos do PMAQ, e analítico, por avaliar indicadores de infraestrutura tanto na perspectiva das equipes quanto na satisfação dos usuários. Ela adotou  o modelo lógico como ferramenta de pesquisa, essencial para estruturar a análise da Rede de Atenção à Saúde Materno-Infantil (RASMI). Esse recurso possibilitou identificar relações entre insumos e diferentes perspectivas, além de testar as hipóteses delineadas na árvore do problema. Tal abordagem mostrou-se útil para orientar políticas públicas e evidenciar gargalos estruturais, organizacionais e de acesso que impactam a qualidade da atenção materno-infantil no SUS. Segundo a pesquisadora, a reprodutibilidade do modelo representa uma vantagem significativa, ampliando seu potencial para subsidiar pesquisas futuras.

Entre as recomendações originadas pela tese, destacam-se o fortalecimento da infraestrutura e a garantia de insumos essenciais para o cuidado materno-infantil; a ampliação do número de profissionais de saúde, acompanhada de processos contínuos de capacitação, sobretudo em áreas remotas; a melhoria dos sistemas de registro, comunicação e monitoramento entre os diferentes níveis de atenção; e o investimento em ações específicas voltadas a populações em situação de maior vulnerabilidade, como indígenas, migrantes, ribeirinhos, quilombolas e LGBTQIA+.

Os resultados da pesquisa deram origem a três artigos: o primeiro, intitulado “Avaliação de Estrutura da Atenção Primária à Saúde Materno-Infantil em Roraima, Região Norte e Brasil (2012-2017)”, teve como objetivo analisar o espaço-tempo da estrutura da rede. O segundo, “Saúde Materno-Infantil na Atenção Básica: Perspectiva das Equipes Profissionais em Roraima, Região Norte e Brasil (2012, 2014 e 2017)”, analisou a oferta e a qualidade dos serviços em diferentes abrangências geográficas. Ambos foram publicados na revista Ciência & Saúde Coletiva.

O terceiro artigo, submetido à mesma revista, intitula-se “Pré-natal, Puerpério e Puericultura na Atenção Básica: o Olhar dos Pacientes em Roraima, Região Norte e Brasil (2012-2017)” e avaliou aspectos organizacionais e da qualidade assistencial voltada às gestantes e ao desenvolvimento infantil até dois anos nos serviços públicos.

“A análise integrada dos dados que geraram os artigos evidencia que, embora tenha havido melhorias na infraestrutura e na gestão dos serviços, persistem fragilidades importantes na continuidade do cuidado e na disponibilidade de recursos essenciais, especialmente em regiões com maior vulnerabilidade social como Roraima”, destaca Daniele sobre as produções. 

A pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz, que integra o consórcio para oferta do Programa VigiFronteiras-Brasil/Fiocruz. O trabalho foi orientado pelas professoras dras. Mônica Rodrigues Campos (ENSP/Fiocruz) e Débora Castanheira (INI/Fiocruz).

* Crédito da imagem: Fiocruz imagens